sábado, 28 de novembro de 2009

O sequestro de Deus

            
               Ainda rezava, com descredito, de pé, mas agradecia a deus. Nunca tinha sido atendido em nenhuma de suas reivindicações, mas acreditava que um dia quem sabe... já tinha perdido as esperanças cinco vezes, perdera a crença nove vezes, mas ainda rezava. Numa tarde de inverno, estava quente muito quente, numa rua qualquer, ele duvidou do divino pela décima vez. Ai era demais, duvidar nove vezes tolerável, dez jamais. Chegou como quem não quer nada mas chamou pelo nome.
               - Edinalvo!
              Já virou com a mão pronta para esmurrar o infeliz que o chamara por este nome dos diabos, derrubaria o desgraçado só para vingar do soco poupado nos pais, daria mais dois só por garantia, quando se deparou com o velhinho de idade completa de pé, apresentando a maior serenidade deste mundo, talvez do universo, vá saber por onde este doido anda.
              - Tá louco véio? Nunca ninguém me chamou assim desde... desde...
              - ...os dez anos?
             Piscou duas vezes, sem entender como é que aquele cidadão desconhecido sabia disso, nunca dissera nem para a esposa deste seu penitente nome, saíra de sua cidade natal, viveu pelas ruas e sempre se apresentou com Edi.
             - Como sabe?
             - Sou aquele que tudo sabe e tudo vê.
             Contando ninguém acreditaria nisso. Ele ateu, ou quase ateu.
             - Agnóstico?
             - O que?
            - Isso mesmo. Você não definiu se acredita em mim, ou não, então duvida, isso se chama agnosticismo.
            - Como sabia disso?
            - Sou aquele que tudo sabe e tudo vê.
            Nossa deve ser um doido fugido de algum manicômio. Pensou.
            - Não fugi de lugar nenhum. Tampouco de algum manicômio, sou Deus.
            Começou a acreditar que se tratava mesmo do criador do céu e da terra.
           - Faz algum milagre? Como foi feita a terra? De onde veio isso tudo? Por que a mulher é tão complicada? Por que o dia tem vinte e quatro horas?
           - Mistérios fazem parte das descobertas.
           - Meu Deus!!! Agora é que ninguém vai mais acreditar em mim.
           - Nunca acreditaram, por que acreditariam agora?
           - Posso dizer que vi Deus, e abrir uma igreja, ficarei rico.
          - Não podes fazer isso?
          - Por quê? Tem tantos por ai que fazem isso.
          - Há tempos eu não venho por aqui. Até me assustei com o estrago que foi feito.
          - Mas o Senhor não está em todos os lugares?
         - Nunca disse isso. Estou pensando em informatizar o céu, mas fico com medo de receber vírus. Os anjos estão levando propinas. Eles são encarregados de vigiar as pessoas, e relatarem para mim. Tenho outros planetas para cuidar. Estou criando um outro sistema de galáxias longe daqui. E leva tempo para receber tantas reclamações.
         - Então tem outros planetas habitáveis?
         - Mas é claro. O homem é louco de pensar que está sozinho por aqui.
         Nesse momento andavam numa rua escura e dois homens assaltaram os dois.
         - Mãos ao alto.
         - O que é isso? – Indagou Deus.
         - Um assalto tio, passa a carteira.
         - Eu não sabia que o homem tinha regredido tanto.
        - Isso é por que o Senhor está aqui a pouco tempo, se ficar mais um pouco vai ver que não evoluíram nada.
        - Vamos lá velhotes não temos a noite inteira para fica de “lero-lero”, passa  o “capim”, que “vamo ralá peito”.
        - Isso mesmo! Seus “mané, vamo passa fogo”.
        Vendo que Deus estava perdido no linguajar chulo. Tentou traduzir.
       - Dá o dinheiro, ou eles nos matam.
       - Mas estes dois seres homo-habilis estão esticando as palavras?
       - São homo-sapiens.
       - “Tão tirando onda, cum noís cumpadi?”
      - Ih!!! Faz tempo que não venho por aqui, mesmo!
      Num grito, um dos assaltantes atirou contra Deus que nem se mexeu.
      - Meu Deus! O que “papagaiada” é essa?
      - Ele não vai morrer porque é Deus.
     Houve longos minutos de silêncio entre os quatro, num misto de espanto e de surpresa. Os bandidos olhavam para a arma e para o cidadão diante deles.
      - Se ele é mesmo Deus, faz uns milagres “pra nóis”.
      - Não adianta. São segredos do sucesso.
     - Então Deus vem “cum noís”. Imagina a grana que este velhote deve ter? Milhões de igrejas arrecadando fortunas.
        Deus nem teve tempo de dizer que não sabia de nada. Foi arrastado pelo escuro da rua e Edi não mais teve noticias dele, nem rezou mais para o Poderoso, mas para todos os Santos, querendo saber do paradeiro do Divino. A maioria das pessoas passou a chama-lo de louco. Tem uma legião porém que o segue, chamando-o de o novo Messias. As outras igrejas tentam acabar com esta crença ridícula, imagina um doido que prega que Deus está na terra, e que ele tem uma missão, encontrá-lo, já que a policia ameaçou prendê-lo caso brincasse com eles de novo.
         Dias depois, ainda tentando liminares para acabar com a nova igreja “ Procuradores do Deus vivo na terra”, os lideres religiosos recebem estranhas ligações exigindo resgate para libertarem o Criador, e riem, afinal eles não acreditam em nada disso. Nem Deus.

sábado, 7 de novembro de 2009

Quinze Segundos


                 Pararam no sinal. Ele, num carro potente cinza, último tipo, destes que fazem de zero a cem num piscar de olhos. Ela, num carro popular, mais de três anos, destes que fazem de zero a cem depois de muita reza. Mas ele nem notou. Ela sim. Pois ele a fechara quase causando um acidente. Ela desceu do carro, furiosa, mulher de atitude, ele gostava disso, hoje em dia na alta sociedade está minado de mulheres fúteis e risíveis. Parecia hipnotizado, pois as barbáries que ela proferia parecia não ser com ele, tal era seu fascínio pela beleza escultural daquela mulher voluntariosa á sua frente.
                Sabia que ali estava a sua musa, a tão procurada mulher da sua vida. Sempre procurara uma mulher assim capaz de por a cabeça dentro da boca de um leão. Freqüentava as altas rodas da sociedade da cidade, rodeado por médicos e aspirantes de socialites, que sem possuir conteúdo algum, procuravam ascensão social casando com um bom partido, como se ainda vivessem num feudo.
                Não acreditava que este homem pudesse ser tão pasmado, estava ali desaforando a tudo e a todos, com palavras nada amistosas, e ele sem reação. Somente lhe olhava com um ar de bobão. Era bonito parecia ser um destes “playboys”, que pega o carro do pai para correr atrás das mulheres. Poderia ser um destes homens que fazem tudo que uma mulher quer. Era um destes que estava precisando, sempre foi muito dominadora. Parecia já escrito, um encontro assim no meio da rua, numa situação destas. Era muito mística, sabia que era o momento.
                O sinal abriu, ele acelerou, ela voltou para seu carro, à fila andava, uns já buzinavam impacientes. Depois disso nunca mais se viram, ambos ainda suspiram quando lembram daquele instante.

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Namoros em tempos de escola

                Eu estava namorando. Ela não sabia. Um dia, me aproximei, com coragem, e perguntei:
                - Quer namorar comigo?
                - Sim.
               Disse entre dentes.
               - Maldita.
               Acabou assim minha paixão platônica? Fui embora desolado.

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Te Amo, Manoela


                 Talvez como um casulo, eu estava atirado num canto mofado de um sofá duro destes de aeroporto. Lá fora chovia, ali fazia frio. A laje de mármore veneziana me esfriava as costas como um congelador. Não podia fumar, mas à vontade de acender um cigarro me queimava os pulmões. Uma tortura que só um fumante é capaz de desintegrar um pulmão para sentir. O avião não chegava. Passava das sete horas. Esperava Manoela, com chegada prevista para as seis e meia da noite, tínhamos marcados de passar as férias de julho na praia. Tínhamos nos encontrados numa sala de bate papo da internet, dessas que chamam de chat, numas das raras vezes que consegui entender dessa linguagem maluca que usam por lá.
                 As pessoas na minha volta corriam de um lado para outro, como lagartas tontas, num converso incompreensível. Ainda que não tivesse visto, nesta hora talvez já entendesse a gravidade do problema. Quem imaginaria algo semelhante diante de seus olhos. Um avião cruza a pista e não para. Salta para a morte além da avenida. As chamas me derretem, escorrego pela parede como sangue quente.
                 Meu cadáver permanecia perdido como um palheiro rodeado de agulhas, que me traspassam sem piedade. O fogo que consome os arredores me gela o corpo, estirado pelo chão frio deste assassino aeroporto. Veio-me a mente Manoela. O que estavam fazendo com ela? E comigo? Um amor assim não poderia ser queimado nas chamas de um coração apaixonado. Alguém me puxa pela mão. Borboletas amarelas adentram pela janela aberta como uma rajada de fumaça e me guiam pela mão rumo ao nada. Trezentos e oitenta milhões delas a enfeitar um saguão, e vinte milhões tentavam arremeter na pista.
                  Tivemos uma paixão ao primeiro clique, projetos para uma vida juntos. Ela chegaria a São Paulo numa inacabada terça-feira e depois iríamos para Fortaleza, curtir as férias de inverno na quente cidade cearense. Ela embarcara em Porto Alegre, num frio de “renguear cusco” como escrevera no seu ultimo e-mail, e queria calor. Até os projetos de três filhos brincando no quintal numa manhã de sol, Lana, Alisson, e Geovana, não necessariamente nesta ordem, estariam estraçalhados contra uma parede. As lágrimas deixavam sulcos profundos no meu rosto, como se um avião passasse deslizando sobre minha face. Meus gritos cravaram minha garganta como espadas de desculpas esfarrapadas. A correria continuava e parecia que eu estava noutra esfera, meus pés permaneciam grudados ao chão como o redentor em seu morro ou algum imã gigante me agarrava pelos tornozelos.
                 A pergunta cruel me envolvia. O que seria de mim? Iria contrariar Gilgamesh, em vez de buscar a vida eterna, buscaria a morte eterna. De que adiantou minhas orações. Minha fé pesou as almas dentro do avião. Não havia respostas. Havia perguntas e desculpas. Desculpas que não fecham as chagas, abertas ao léu, incuráveis escancarados á uma hipocrisia coletiva. Eu queria gozar com um cigarro entre os lábios, mas nem isso eu posso, estou preso. Preso a um cinto de imbecilidades que nem posso tira sem antes chegar ao banheiro de mármores importados, que não se importam com o pouso irregular de meus milhões de impostos, só relaxam ao som da luz e do amor profundo deste lábaro estrelado.
                  Minha vida sem duvida acabara-se ali. Mandaria por meu nome na lista de mortos. Não tinha lista. Nem informações. As estrelas do mato azul da nação esconderam-se de vergonha. Nem espiavam pelas frestas abertas por estupradores eleitoreiros. Uma empreiteira construía meu sono que não fechava meus olhos, nem abria minha garganta para libertar o grito de dor, preso como um trem de pouso que não tem uma pista para sentar os pés.
                   Todos os mortos gritavam em meus ouvidos quando fiquei surdo. Eu não ouvia mais nada nem o som do silêncio boquiaberto de pavor. Sirenes de bombeiros e ambulâncias pareciam estar á milhas e milhas distantes. Um grito de medalha ecoa pelos canais aéreos do Brasil. Um brinde ao caos. O brinde a honra destes homens é um tumulo á honestidade que voltava ao país neste avião em chamas. Junto meu coração queimava, infestando o aeroporto com o cheiro fétido das maracutaias institucionalizadas.
                  Ainda sem forças me arrastei pelas ranhuras de minhas culpas para tentar sair dali. Ninguém entendia nada nas explicações não dadas pelas atendentes. Enquanto sangro minhas responsabilidades nas escolhas que me impuseram desde sempre, vou saindo na ânsia de ajudar as vitimas molhadas de incompetências.
                  Meus olhos ainda estão vermelhos, quando encontro Manoela. Ela diz que me mandou um e-mail dizendo que viria num vôo posterior, enquanto eu corria para o aeroporto para espera-la. Estava tudo como antes. Pouco tempo depois, esquecida a tragédia todos tomavam um sorvete de frente para o mar.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Meninas boas vão para o céu


                   - Você vai morrer e não vai para o céu!
                   Uma oração, uma palavrinha com deus. Era o convite para um pesadelo.
                   - Você vai morrer e não vai para o céu!
                  Ainda adulta vendo seu velho avô morto, gelado dentro de uma caixa de  cor marfim, um rosário no pescoço e uma bíblia nas mãos, ouvia suas ameaças.
                  - Você vai morrer e não vai para o céu!
                 Como se um castigo divino, perdera uma perna e um braço, e definhou por vários anos, vegetando sobre um catre duro. Perecera em vida uma eternidade infernal. O pastor mesmo falava, sobre o defunto.
                  - Um homem exemplar, digno de sentar a sua direita, meu pai. Aleluia.
                  - Aleluia!
                Gritavam os presentes em coro, enquanto a jovem olhava para os dedos que sobraram, e sentia calafrios de raiva. Aqueles imundos dedos, usados hipocritamente para folhear as escrituras sagradas, e lhe deflorar na tenra idade, em cima de uma mesa, um oráculo da igreja. Diante dos vizinhos era um dedicado pai de família, cinco filhos, dezoito netos. A filha mais velha, tivera três filhos, um, ainda menina. Anos mais tarde, fora acusada de satanismo pela família, pois, só aplacara sua angustia mergulhada nas drogas. As três meninas, ficaram sob guarda dos avós, corria a lenda, que eram filhos do próprio avô. Isso morreu com ela numa overdose de cocaína, anos atrás, e agora com o culpado daquilo tudo.
Amparado pela palavra de deus, uma igreja enorme, e uma mente doentia, abusava de inúmeras fieis, escorado nas tabuas da lei. A jovem, então com sete anos, espiava pela cortina a pregação eloqüente do avô que tanto admirava, não só ela, como os vizinhos todos, que se ancoravam no velho pastor, para qualquer problema, tirava a roupa da fiel, e lhe bolinava com fervor, embora caquético, e sem o vigor físico de outrora, usava meios pouco ortodoxos.
                  Qualquer coisa que se falasse contra o pastor, seria prontamente rechaçada. Sempre que houvesse alguma pessoa com problemas ele deixava qualquer coisa que estivesse fazendo e se dedicava a causa.
                  Sem saída, volta e meia sua mãe lhe deixava na casa dos avós, e não tardava para ele entrar com uma bíblia e dizer.
                  - Vamos orar. A palavra de Deus precisa ser cumprida. Aleluia Jesus.
                 Sabia ela que iam para a sala de leitura e oração, para seu avô abusar dela. Sem ter a quem reclamar usava a bíblia como desafeto, criando uma verdadeira aversão ao livro sagrado. E se recusava.
                 - Você vai morrer e não vai para o céu!
                - Eu não quero, isso é feio!
                - Isso é uma obra de Deus. Você está sendo má. Meninas boas vão para o céu. Você está com o demônio no corpo?
               Tijolo a tijolo, o coveiro, fechava a tumba, e sua alma ia se libertando. Os presentes oravam para o defunto ser bem recebido no céu, a jovem, num silêncio frio, os olhos secos atentos nos tijolos, sabendo que findava um pesadelo, sem céu, sem inferno.
               Quando o coveiro pôs o ultimo retoque de massa no sepulcro, sentiu-se livre, era uma menina má e poderia ir a qualquer lugar.

               Fatos reais, narrados pela própria personagem.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Crise existencial de um esqueleto.

               Eu ainda estava morto, quando pensei... Opa! Se eu penso, logo existo, e se existo, logo não estou morto!

O Morto

            
               Eu ainda estava morto, quando tocaram a companhia. Não me mexi. Fingia que não tinha ninguém em casa. Por muitos minutos, num trocadilho infame poderia dizer eternos, fitei o teto. Fiquei em silêncio. Hoje eu não queria atender ninguém.

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Batidas na porta

               As batidas na porta, mesmo que suaves, romperam com o silêncio no fim da madrugada fria. Nem as aves tinham acordado, tampouco o galo despertador do dia, tinha dado sinal de alerta, e Mozo, já estava junto ao fogo de chão, chimarreando, na companhia da solidão, que ficava calada em seu canto, imóvel, com o olhar fixado no fogo. Não fazia idéia de quem seria, a esta hora, naquele fim de mundo, onde não se via ninguém há muito tempo, ainda mais com aquele frio.
              Morava na casinha de sapê, que construíra para morar com seu grande amor, nas margens do arroio esperança, nas voltas de um rincão, cercado pela natureza, bem longe de todas as mazelas do mundo. Ali criou cinco filhos, que o destino espalhou pelo mundo, e deles não tinha mais notícia. Parecia que até o tempo tinha esquecido do mundo a parte que era este seu pequeno recanto de paraíso, a não ser pelas marcas no rosto, lavradas com ferro de trabalho, dia após dia, de sol a sol. Mas vivera feliz, com sua companheira de longos anos, cinqüenta anos de casamento, mas que a morte, lhe arrancara com vil desprezo, levando metade de sua alma. Este ser, cruel e desumano, esquecera-se dele ali, só para mata-lo em vida, deixando uma dor latente se arrastar pelos anos, longos trinta anos, de uma amarga espera, que só a solidão suportara, até a saudade com o tempo, fugira cansada, desaparecendo no mundo, como seus filhos.
               Caso suas contas não estiverem erradas, havia completado cento e quatorze anos, neste ano, no inverno, mas não lembrava mais o dia exatamente. Foram muitos anos de vida, era chegada a hora de partir. Imaginava que a morte tinha levado sua amada para algum paraíso perdido, e que logo voltaria para busca-lo, então se pôs a esperar... e esperar... a morte, este ser asqueroso e nojento, esquecera-se dele. Quem sabe, nem a morte apareceria neste fim de mundo.
               A solidão, tão triste, lhe fazia companhia, em silêncio absoluto, há anos sem sair de junto a ele, algumas vezes, ia até o galpão, ou até o riacho, mas logo voltava, agora não se movia, só olhava as chamas. Batidas na porta. O homem, diante do fogo com a cuia do chimarrão nas mãos, hesitante, não se movia, apenas via sua vida. Mais de cem anos, com uma certeza, foram mais tristezas do que alegrias. Trinta anos sem sua amada, pareciam mais de trezentos, os cinquenta de casados, apesar de tudo o que havia de amor entre eles, pareciam cinco. Mesmo os cinco frutos deste amor, foram arrancados, deixando marcas duras num peito tão calejado. Agora a morte lhe batia a porta. Estava tão próxima, só uma porta velha de madeira, os separava.
               Não chegou a rir, porém achava engraçado, queria tanto morrer, esperando por anos e anos este momento, e agora diante da derradeira hora, tremia. Estava com medo, medo da morte. Queria esticar a vida mais uns anos, mais um pouco, mais uns minutos. Não sabia ao certo porque, mas queria viver mais. Talvez para não deixar a solidão sozinha, ela poderia se queimar pela manhã, ao acender o fogo. Mais tarde a vaca precisava ser ordenhada, e ainda tinha que preparar o café. No verão, que logo chegaria, precisava preparar a terra para o plantio. Ninguém alimentaria o gato que dormia encolhido sobre a lenha.
              Uma lágrima furtiva lhe escorre pelo rosto. Bem que a morte poderia ter se esquecido da sua existência. Poderia fazer de conta que ali era seu esconderijo, destes das brincadeiras de menino, e que não pudera localizar. Poderia inventar uma desculpa qualquer, para deixa-lo viver mais uns anos, talvez mil anos, pois cento e quatorze anos, não foram suficientes para viver. Batidas na porta. Levantou-se da cadeira, lentamente não por falta de forças, mas com intenção de retardar mais um pouco este encontro final. A passos lentos, fez da pequena distancia até a porta, parecer uma eternidade, só para pensar mais um pouco sobre tudo que vivera, ou que poderia ter vivido. A solidão deixou escapar uma lágrima incontida, que escorria pela face esbranquiçada, e não falou nada. Ficaria sozinha, desamparada. Quem sabe logo teria uma companhia, afinal a saudade poderia voltar.
               Assim que a porta foi aberta, a morte entrou sem pedir licença, não era feia como esperado, até seria bonita aos seus olhos, não fosse a pele tão pálida. Esta cor alva, talvez fosse decorrente do frio da madrugada que findava, ou da dor de tantas despedidas. Mozo deu dois passos para fora, na ânsia de olhar o mundo que o cercara, por muitos anos, mais uma vez que fosse. O sol já despontava detrás dos montes, com cara de sono, muito tímido, iluminando aos poucos as copas das árvores, despertando as aves, que envolviam a manhã, numa sinfonia alegre, aonde as gotas da tristeza, iam evaporando junto ao orvalho congelado que cobria os campos de branco. O galo, já atrasado, sinalizava o inicio de mais um dia. A vaca espreitava na porteira, o bezerro no galpão, á espera da ordenha. O cachorro companheiro saiu no terreiro, acenando o rabo alegremente, como quem diz bom dia, contrastando ao dono, que se amargurava por dentro. Nunca dera á devida atenção a tudo isso, amanhã certamente, não mais a teria diante aos olhos, nem lembraria de nada, ao menos era isso o imaginado.
                Ao voltar para dentro, fechou a porta atrás de si, a morte estava diante do fogo, aquecendo suas mãos de donzela, conversando com solidão que há muitos anos não via. Depois arrumou um pouco a erva na cuia, e sentou-se entre elas, continuaria seu chimarrão, enquanto a morte se aquecia junto ao fogo.

terça-feira, 29 de setembro de 2009

O homem isolado na Calçada

                De repente estava só. Poderia ser apenas uma leve impressão, olhando ao seu redor, as pessoas, milhares delas, passavam por ele sem que percebesse que estava ali. O olhar vagou ao longe, pareciam ondas humanas, invisíveis. Caminhava com um pouco de dificuldade, com os anos á pesar-lhe sobre os ombros. Um manto negro, como profecia, cobria seus ombros cacundos. E as pessoas continuavam a passar por ele, apressadas, pareciam fugir. Ele sabia, fugiam do futuro incerto, que se escondia logo depois da esquina. O rumo incerto. Ninguém por perto, só corpos invisíveis. Deitou na calçada, jogando de lado seu chapéu, roído pelos dias, para ver se alguma alma caridosa lhe estendesse a mão com um gole de água ou um misero pão. Mas suas suplicas esvaem-se por entre as almas invisíveis, se esgueiram por entre corpos irascíveis. Não vale nada mesmo esta vida.
                Vale o seu chapéu velho rasgado, jogado no chão, sem ter ao menos uma moedinha desvalida. Seu mundo termina ali, onde deveria ser o começo. Ele permanece sentado na calçada, esperando. Esperando. Os minutos passando, e ele esperando. As pessoas passando, e ele esperando. O mundo girando e ele esperando. As horas passando ...passando ...lentas ...lentas ...e ele esperando... esperando. A chuva vai caindo, as pessoas correm fugindo dela, as pessoas vão sumindo, e ele esperando. Espera por uma mão, que lhe seja estendida, seja com água, ou seja comida, ou apenas uma mão, mesmo que com uma única pretensão, a de levantá-lo dali. As águas correm pelo rosto repleto de rugas secas, sem saber o que são as lágrimas ou se é a chuva.
               Fica sentado imóvel na calçada esperando. Os dias vão passando...passando. Passam lentos, martirizando ainda mais seu cansado corpo, enquanto ele fica esperando... Sem esperanças, fica olhando as pessoas retomarem suas rotinas robotizadas, sem olhar para nada, sem olhar para o lado, para ver o pobre diabo jogado na calçada. Um odor fétido circunda o estranho ser à beira do caminho, onde todos passam, onde tudo passa, uma onda humana invisível, surfadas com maestria, por pastores de ovelhas desgarradas, e ele sem uma lãzinha refugada, para esquentar seus pés nus sobre a pedra gelada.
               Os meses vão passando... e o homem sozinho no meio da multidão, á rua vai sumindo, ele vai ficando ali, só, sentado na calçada á espera de um manto desgraçado, sem uso, para que possa cobrir suas dores. As feridas abertas pela solidão sorriem para ele, como se velhos amigos fossem. A calçada aos poucos vai se tornando intima, a ponto de confessar velhos segredos. As formigas, tão egoístas, não dividem os farelos de pão, enquanto usam seus magros dedos, como velozes auto-estradas. Os pombos inquietos desfazem-se de seus dejetos, em cima dele, sem pudor nem compaixão, do ser que vai aos poucos se enraizando ao chão, esperando pelos cupins que devorarão seu tronco, os galhos, as raízes e as folhas.
                Os anos vão passando, e a carga aumentando, as pessoas se multiplicando, agora da calçada ele já nem vê a rua, as pessoas passam apressadas, pisam nos seus pés, que já perderam a sensibilidade, no inicio meses atrás, ainda sentia os cães lamber o sangue das pisadas alheias nas pernas, agora os poucos cães que conseguiam chegar queriam roer sua canela exposta. Ele até tenta levantar a mão para dar um tapa no animal, mas algumas formigas já devoraram suas forças.
              Um político em campanha, fala aos transeuntes, que ali está uma pessoa que precisa de ações governamentais para sair daquela situação. Até que enfim alguém olhou para ele. As pessoas comentam o horror daquele resto de corpo jogado na calçada, e que vai se deteriorando dia após dia. Até as eleições sempre tem alguém ali fazendo campanha, pessoas comentando, câmeras e microfones, que afugentou o cachorro faminto que agora se esconde debaixo de uma lixeira. Só um rato, agora, lhe roí a canela, dentro do osso onde ninguém vê. Um padre faz o sinal da cruz, um pastor lhe dá uma benção divina, e assim vários representantes do superior passam, e o homem permanece ali, agora cada vez mais corroído.
             O prefeito começa a ficar impaciente com o interesse do país inteiro sobre aquele homem derretendo na calçada. O homem virou capa de revistas nacionais e internacionais, os jornais escritos e falados, as emissoras de radio só falavam disso, até as partidas de futebol foram paralisadas para minuto de silêncio em homenagem. Em cada esquina, salões de beleza, bares, barbearias, cafés, reuniões de intelectuais, teses de doutorandos, redações de vestibulares e concursos, sessões plenárias, só se falava no homem exilado na calçada. Um vereador propõe uma taxação para moradores de calçada, outro taxar o odor fétido que está causando ao centro, outro propõe levá-lo para outro município e outro ainda propõe coloca-lo na prisão por fazer tumulto em publico e ameaçar o bem estar, a ordem e a segurança dos cidadãos de bem.
             Meses mais tarde, passadas as eleições ficaram descansados, já tinham esquecido totalmente o assunto, já não se ouvia mais falar no homem, o cachorro tinha morrido de fome, e agora era comido pelas moscas, e o homem na calçada era devorado pelos ratos, formigas e outros insetos.

Suicidas vão para o céu?

                Fora abandonado pela quarta vez. Primeiro sua mãe, no parto, depois seu pai, que saiu para comprar cigarro, depois sua irmã, com um sonho de ficar rica na América, agora Leila, com sonho de ser Big Brother. Estava sozinho diante dos chuviscos da TV. Superou todos os abandonos, menos Leila, sua mãe, diziam:
                 - Ela está no céu sentada à direita de deus pai nosso criador.
                Queria não acreditar. Não tem pai no céu, talvez caminhe perdido pela terra atrás de um boteco imundo atirado as moscas numa busca desenfreada para torrar pulmões. Leila, que sabe-se lá o que estava fazendo pelo mundo, mantinha uma copia colorida bem viva, atormentando seus pensamentos.
Estava certo de uma coisa, só tinha uma saída. Mata-la. Dentro da sua cabeça, pelo menos. Iria se suicidar. Comprou uma arma, depois de quase seis meses fazendo todos os tramites legais para comprar uma pistola dos seus sonhos. Era niquelada, automática, quinze tiros. E nesta tarde, ainda vendo Leila na tela de sua TV ?chuviquenta?. Ainda estava na sua cabeça, nos quadros, nas telas, no aquário, na janela e nas flores. Opa, nos outros lugares tudo bem, nas flores era demais.
               Colocou o cano gelado da arma, prenuncio de um projétil quente lhe abrindo caminho pela cabeça. Estava numa posição muito estranha, não daria, poderia falsear na hora de puxar o gatilho. Coloca o cano no ouvido. Desiste. Coloca o cano dentro da boca, mas desiste novamente. Enfim, coloca embaixo do queixo e se prepara para o momento derradeiro. Conta até três e vai puxar o gatilho. Para. Lembra-se que não escreveu nenhum bilhete ou uma frase explicando o motivo.
               Sentou se na cadeira. Abriu um caderno e pensou no que escreveria. Escreveu. Arrancou a folha e jogou fora. Quando uma idéia lhe desce a cabeça. Suicidas vão para o céu? Não queria morar no inferno para sempre. Seu epitáfio não saia. Descarregou a pistola na caneta.

A boa música brasileira

Rádio UFPR

 

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exclusivamente para a Internet no Estado do Paraná.