sábado, 25 de dezembro de 2010

Farelos de felicidade


          Dois anos, quase três. Pouco sabia de nada. Sabia, porém, que estava só. Estranhamente só diante de tantas pernas conhecidas. Estava na casa da fazenda. Via sua mãe com uma mala na mão caminhando apressada pela estrada poeirenta. Os nove meses de intensa e interna convivência, não valeram nada. As lágrimas placentosas de sua face, tinham dois gumes cortantes e gelados. Seus gritos reverberavam pelas colinas, mas não afetavam o coração da retirante. Como fugitiva sem perseguidores, desapareceu para além da mata.

                 A avó incrédula, segurava uns papeis e um rosário. Lamuriosas ave-marias,  num tom consternado de despedidas sepulcrais. Ninguém ousou tocar no menino, que permaneceu agarrado ao portão de madeira, lágrimas teimosas molhando a poeira do chão, e olhar perdido na desértica via que levava sua mãe ao fim do mundo. As memórias escassas mais lúcidas, de um colo quente, de um útero protetor, se esvaiam junto a espera que se estenderia por mais uma porção de vidas de agora tinha.

               Quase três. Era verdade. Depois de as pernas cansarem de segurar o corpo e o portão, desabou sobre a grama. Olhava o azul do céu imaginando onde tudo aquilo terminaria. Havia um mundo após o rio. Achava que o fim do mundo era lá onde as montanhas tornam-se azuis. Deveria ser onde o céu toca o chão. Um dia ainda chagaria lá para ver de perto como o mundo terminava.

                  A noite ia caindo mansamente, deixando o céu negro, com furinhos para o sol espiar, as pessoas estranhamente chamavam cada olhinho do sol de estrelas. Adultos são estranhos. A lamparina acesa pendurada no teto, fumacento do fogo de lenha, deixava o ambiente turvo. As pessoas estranhamente conhecidas, ficavam fantasmagóricas naquele lusco-fusco, e falavam uma língua monstruosa que ele não conhecia. Sabia no entanto que o paparicavam, como tolo, pobre menino pobre, desprovido de lar.

                Só na hora do jantar, mais calmo, mas ainda triste, perguntou pelo pai. Que era pouco presente, via-o de tempos em tempos, imprecisos, não sabia contar o tempo, ainda, mas se fascinaria por ele anos mais tarde. Mesmo que o tempo teimasse em fazê-lo de marionete sem fios, jogado num canto pelo vendaval da vida, sem respostas, e as perguntas rareando. Todos se entre olhavam pigarreando. O homem idoso na ponta da mesa, fumava um cigarro fedorento, um outro de voz esganiçada, seja lá o que isso queria dizer, diziam ser um parente distante, fumava um outro daqueles de matar mosquito, como ele mesmo dizia. Duas mulheres, na penumbra no outro lado da mesa, uma moça ao seu lado, só o olhavam com pesar e consternamento.

             Somente quando uma senhora gorda, com uma idade bem avançada, a quem todos chamavam de Nona, entrou na sala de jantar com uma travessa de macarrão recebeu a resposta.

                - Eles virão te buscar assim que acabarem de fazer a casa.

           Aquelas palavras ecoaram por dias na sua cabeça. Assim como as que sua mãe dissera na saída.

                - Eu volto para te buscar daqui a quinze dias.

           Passaram-se meses. Depois de alguns dias, já estava mais habituado ao lugar. Já quase esquecera da cidade, nem contou os dias, não sabia contar, mas dias e dias ficava afincado no portão, olhando a ponte, e vendo a água passar, sem saber para onde ir, estava como o rio. Não sabia para onde ia.

              Nem sabe ao certo quando foi, nem quanto tempo tinha se passado, provavelmente já estava perto de seu aniversário, pois a Nona e uma tia discutiam a data certa para comemorar os três anos do menino, sem saber porque ainda comemorariam uma data passível de esquecimento, seu pai apareceu. Estava pequeno demais para viver. Depois de árdua discussão, partiu com seu pai. Veria o que tem depois do fim mundo, lá além das montanhas cinzentas, quase azuis. Seu pai lhe pôs sobre os ombros. Sentia se grande novo. Nem pensou mais na mãe, a felicidade era farelo de salgadinhos sobre o cabelo do pai.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

O homem que processou o vento

De joelhos, o homem que era ateu declarado, roga aos céus.
- Onde está tu, oh Deus! Tu que arrancastes minhas vestes e minha casa, por duas vezes, agora arranque essa!
O homem estava de frente a sua nova casa. Construída de pau-a-pique, com toras de madeira para servir de esteio, cravados em mais de oito metros dentro do chão, reforçado com madeiras de lei e muitos pregos. Tabuamento reforçado com pranchas grossas, tesouras pesadas com telhas de amianto bem ajustadas.
Aprontara a casa depois de dois anos de árduo e sacrificante trabalho, falta de dinheiro e ainda custeando o tratamento de sua esposa, que havia quebrado a bacia no advento da última vez que sua casa havia tombado pelo poder do vento. Agora estava perfeito. Sua nova e forte casa estava pronta, sua esposa estava na salinha construída para ser uma espécie de Igreja para suas orações. Nesse momento ela rezava rodeada de velas, para que Deus apiedasse das palavras insanas que seu marido proferia lá fora.
Nesse momento uma tempestade se formava, ele confiante bateu no peito, seguro de si e disse:
- Vamos lá! Tenta derrubar esse “deusinho” de meia pataca. Mostra que tu existes e mostra que tem poder!
O vento foi aumentando. Formava uma espécie de tornado, e vinha arrancando árvores, derrubando aramados e carregando animais para longe. Ao passar pelo local da casa arrancou num instante, só deu tempo de ver o rosto assustado de sua esposa na janela enquanto sua casa voava.
- Você não devia ter provocado Deus dessa forma.
Foi jogado a muitos metros de distancia. Não conseguia levantar e desmaiou de dor. Acordou com o sol a pino. Uma fome gigante lhe tomava. Parece que dias e dias tinham se passado. Não sentia mais dor.
- Oh! Céus será que estou morto?
Não estava. Levantou-se. Parecia noutro mundo. Tudo a sua volta destruído, inclusive a casa, aliás, a casa sumira. Restaram apenas sete buracos de oito metros de fundura e um esteio torto. Transtornado caminhou pelas matas próximas e não encontrou nem vestígio de casa, ou sabe-se lá, sua amada esposa.
Ensandecido com a vida miserável de sempre. Partiu para a cidade grande, foi morar na rua, sob um viaduto, por que ali certamente nada o derrubaria, exceto se fosse uma obra Naiaiesca, por sorte não era. Contando sua fabulosa história, tornou-se milionário, e resolveu acabar com seus inimigos. Contratou um advogado e processou o vento. Depois de quase dez anos de espera, o judiciário deu seu parecer.
- Impossível processar o vento, meu caro, não tem ele endereço fixo, tampouco é um ser de direito.
Arrasado, porém, não derrotado, continuou sua saga. Processou Deus. O Todo Poderoso protetor de sua amada esposa, que a arrancou de seus braços, deixou-o sem teto, por um torpe motivo de ego ferido.
Mais dez anos se passaram e outro veredicto judicial.
- Impossível processar Deus, não foi possível intimá-lo, endereço não encontrado, réu não encontrado.
Foi embora. Partiu da cidade grande e voltou ao seu antigo lar, ou aonde deveria ser seu antigo lar, e encontrou apenas o poste torto, já carcomido pelo tempo. Algumas pessoas que por perto moravam, nunca tinham ouvido falar na história. Outros acharam de uma insanidade descabida, algo tolo.
- Nada mais que um delírio coletivo dessa gente da cidade.
- Mas e este poste torto aqui?
- Sempre esteve aqui.
Mesmo com o assunto surreal do camponês, tudo parecia tão real, e muitas duvidas pairavam ali.
- Mas alguém deve ter posto ali.
- Deve ter sido Deus, isso ai esteve ai desde os tempos que Deus andava na terra.
- Mas nunca se perguntaram como e por que esse poste está aqui, neste lugar mais precisamente?
- Não se questiona a obra de Deus, filho, é o que é!
Caiu de joelhos. Era como se orasse para o poste torto. Os demais presentes seguiam suas tarefas absortos, como se nada de diferente estivesse acontecendo, ou como se tudo sempre fora assim. Sentiu-se morto novamente. Tudo o que vivera até ali não poderia ser um delírio. Deus é um delírio. O céu é um delírio. O mundo é um delírio.
- Meu Deus! Eu sou um delírio?
É como que se de repente tudo não tivesse passado de um sonho e um poste torto.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Encontros na areia

                    Desceu de seu apartamento, exatamente seis horas da manhã, estava escuro, mês de maio, pleno outono, da sua janela via o mar, a areia. Comprado depois de muito tempo, pois foi sonho acalentado. Neste dia sombrio de outono, resolveu descer até a praia e ver, o estranho homem que via da janela sentar na areia todas as manhãs, pontualmente seis horas, com exceção dos dias chuvosos e das segundas-feiras. Podia ser um guarda noturno, que na saída poderia estar exausto e precisava recobrar as energias olhando o nascer do sol. Isso deixava a radiante, pois costumava acordar cedo, saia para a sacada com a única finalidade de ver o sol menino.
                   Seis e quinze, ainda estava muito escuro, a praia deserta, como sempre nesta época, morava há muito tempo nesta cidade, mas não acostumara com este avesso da cidade, no verão parecia uma metrópole, e no inverno cidade fantasma. Caminhou até as ondas morrentes, mas não molhou os pés como costume, a água devia estar muito gelada. Lembrou de um antigo filme que vira sobre uma cena bucólica como esta, mas não lembrava do nome. Essa memória! Pensou. Chutou uma conchinha atirada na praia, casa de algum molusco esquecido como ela, uma dupla e tanto. Sentou-se na areia, numa espera de esperanças perdida, pois passava da hora daquele misterioso homem chegar até ali, vai ver estava de férias. Inferno. Poderia ter ligado desmarcando o encontro, mas nada, nem um sinal. Deitou-se olhando o céu cinzento de maio, na ânsia de ver uma estrela solitária moribunda para dividir seus dilemas. Não havia nada. Nem o homem. Que não mandara recado desmarcando o encontro às seis horas.
                   Seis horas da manhã, mais vinte e sete minutos. Estava em silêncio no olhar do relógio, que tranquilamente caminhava a passos curtos, segundo a segundo, rumo ao mesmo lugar, indiferente a mulher que lhe carregava no pulso, que queria gritar ao mundo este dolorido queimante que lhe consumia por dentro. Seria improvável que soubesse de seu encontro, uma vez que nunca se falaram, mas ele devia saber dela que todos os dias, lhe observava de sua janela, para agora ser desprezada, enganada, iludida, pois já o amava. Seus olhares mudos, diziam tudo, mas ele não lhe dava atenção. De repente passou a odiar a areia, o mar, as ondas, até a brisa suave que lhe afagava o rosto todos os dias, seria repugnada, odiaria praia dali pra diante, não mais poria os pés neste local infecto, baniria os banhos marinhos de seu calendário. Aquele bronzeado adquirido durante o ultimo verão, ainda lhe marcava, seria o último. Desejaria um próximo veraneio chuvoso, como em matas tropicais úmidas, para tudo em volta virasse um banhado intransponível.
                    Boa idéia. A melhor que tivera. Seis e quarenta e dois. Poderia chover a ponto de alagar tudo, formar um banhado, não se importaria, ficaria sozinha na praia que tanto amava, pois só assim ninguém lhe causaria sofrimento, vindo até a praia para lhe atiçar desejos para depois sumir sem deixar vestígios nem recados. Nem um telefonema. Levantou-se, sacudiu a areia presa nas roupas, depois vasculhou as dunas, a beira do mar, na procura de vestígios, deveria de ter deixado ao menos um rastro, um bilhete jogado na areia. Nada. Somente areia varrida pelo vento. Mais adiante quatro jovens, dormiam estirados na areia, com uma marca de fogueira no centro, cada um, caído para um lado, deviam ser universitários despreocupados com a vida, na certa gastando o dinheiro dos pais, sem que estes saibam de nada. Olhou-os com inveja, nunca tivera um momento assim na sua adolescência, aliás, nada tivera. Os seres estranhos, parecidos com personagens de contos malucos saídos da cabeça de algum escritor lunático. Um usava óculos, cavanhaque ralo o outro, parecia playboy, com roupas de grife e tênis de marca cara, as meninas uma era gordinha, isso lhe deixou aflita, pois parecia se espelhar nela, não que ela estivesse gorda, nada disso, e a outra era angelical, branquinha como a neve, cabelos ondulados pretos.
                    Seis e cinqüenta e nove, falta um minuto para á sete horas e aquele cachorro não apareceu. Devia ser pelo seu peso. Estava muito gorda era isso. Apertou a barriga. Era isso. Uns quilinhos a mais, o que é que tem, todo mundo tem. Não ela não podia ter, assim como todo mundo, ela era diferente. Era muito diferente, muito diferente, não tinha aquele corpinho violão que os homens tanto procuram, chegavam a ter torcicolo no pescoço para olhar paras as outras mulheres, para ela somente olhares discriminatórios. Estava acabada, não tinha auto-estima, estava um trapo humano jogado na areia. Quem sabe se ficasse jogada na areia, mais tarde seria salva por uma destas ongs que salvam baleias. Estava sendo muito severa consigo mesmo, precisava jogar sua baixo-estima lá para o alto. Quem sabe se jogada na areia junto a aqueles baderneiros de beira de praia não virasse ao menos personagem de algum conto romântico.
                    Conferiu a hora, sete e dez, conferiu a data, terça-feira, não errara não, ontem fora o dia que ele não viera, mas há quase um ano, pouco mais ou pouco menos, ele vem, porque hoje não viria? Seria por causa dela? Não ele ainda não sabia da sua existência. Poderia ele ser casado, e sua mulher o deixara angustiado, ele vinha espairecer na praia impreterivelmente de terça a domingo. Poderia estar previsto chuva para logo mais, deveria ser ele um meteorologista, ficava as madrugadas fazendo as previsões depois vinha para a areia espairecer. Estava morta a charada. Ou quase? Ele devia então estar ali, era terça feira, passava das sete, sempre ia embora depois das oito, justo hoje ele não viera. Olhou para sua sacada, o homem lhe olhava de lá na mesma posição que ela o observava, com gestos polidos, sentou-se na sua rede. Esfregou os olhos, o sol nem estava tão quente para fazê-la delirar. Mas era um delírio, estava vendo-o em vários lugares ao mesmo tempo, ele dizia adeusinho. Era um adeus para nunca mais. Ele arrumara outra para servir-lhe o café na cama como ela assim fizera por longos meses, quase um ano. Ele não a queria mais estava gorda a ponto de enterrar-se na areia, sentia como quem está numa areia movediça. Estava gorda precisava emagrecer, correr na praia ia ser bom, logo estaria esbelta de novo como há anos atrás, voltaria a usar seus biquínis minúsculos. Poderia até usar fio dental. Está tão fora de moda. Pouco importava iria emagrecer depois tomaria um banho de loja. Voltando a ser magrinha como era cada calça dela daria duas novas, uma de cada perna. Caiu na areia rindo da própria piada. Alguns moradores que faziam suas caminhadas, habituais naquele horário, imaginavam uma louca.
                 Sete horas e cinqüenta e quatro minutos, voltou para casa, exausta, estava na hora de seu café da manhã. Depois do desjejum, com queijo, omelete com bacon, café com leite, salame, pães e bolachas, geléias, entre outras coisas. Depois de muito se fartar, sentou-se na varanda para olhar a praia, tinha agora algumas pessoas por lá, dentre elas, um cidadão, barba rala por fazer, cabelo despenteado, fuma um cigarro, e caminha devagar com as mãos nos bolsos.
                  São nove horas e dois minutos. Seu apartamento fica no quinto andar, tenta correr, mas não consegue, precisa muito esforço. O elevador demora. Não é justo, logo agora que tem uma chance real de arrumar um marido. Está apaixonada, precisa correr. Elevador que não anda parece enguiçado. Nem sobe, nem desce está parado no sétimo andar. Justo hoje. Logo neste minuto. Devia ter ficado na areia, mas estava com fome. Maldita gula, ainda bem que é um pecado capital. Era uma pecadora. Iria para o inferno, justo ela tão boa para as pessoas, caridosa. Tremeu ao pensar isso, pois não queria ir antes de casar e ter filhos. Cinco filhos. Que maravilha as crianças correndo pela casa. Finalmente chega o elevador, está cheio de malas e outras coisas não cabe nem um alfinete, a mulher, aquela perua do setecentos e dois vai viajar, deve estar indo para Brasília, dizem que é amante de um deputado ou senador, só pode estar fugindo, deve ser um destes envolvidos com CPIs. Mas justo agora, num minuto crucial e decisivo de sua vida. Não devia ter voltado para o café, isso sim, precisava de um regime. Amanhã mesmo começaria um. Precisava emagrecer. Precisava de um elevador. Precisava de tempo, queria parar o relógio. Não adianta. Precisaria parar o tempo. Precisava se exercitar. Seria uma ótima maneira de começar, desceu correndo pelas escadas, o porteiro tentou conversar, mas ela já saíra porta a fora como uma louca.
                     Foram longos quinze minutos, mas enfim chegou lá, estava com a roupa molhada de suor, cansada, esbaforida. Quanta diferença dos seus áureos tempos de modelo, quando era magérrima, ganhava muita grana, o suficiente para viver bem por muitos anos. Tinha vinte e cinco anos, mas sua carreira de top model internacional tinha desmoronado fazia algum tempo. Tempo este que levou a uma semi-loucura, nem imaginava que pudesse ter um semi-louco, mas nunca admitiu ser considerada louca, talvez, meio-louca. Trabalhara desde os treze anos, mentira, doze, falsificara a identidade para sair de casa mais cedo, não suportava as investidas de seu padrasto na tentativa de molestá-la, algumas vezes chegou ao seu intento, sentia se impura, insegura, parecia que ele ainda lhe perseguia, lhe bolinava enquanto dormia. Tinha então com vinte quatro anos apenas, e já estava aposentada. Por essas e por outras, que não se importava em ir para a cama com qualquer um para conseguir trabalho, era um mundo mesquinho, um mundo hipócrita que as faz coisas que não se pensa, ou até se pensa, mas faz justamente ao contrario. Muitas vezes se pegou chorando, solitária, num antro de cada um por si, nem era mais Deus, mas sim, o diabo por todos. Droga de vida. Vida de droga. Só mesmo drogas para suportar tanta pressão, sempre rodeada de gente de todos os tipos, dispostos a tantas coisas para se dar bem na vida. Era fartura de drogas, das mais leves, para introdução, até as mais pesadas, que na maioria das vezes matava, licitas ou ilícitas, para todos os gostos. Ainda hoje fumava alguns baseadinhos, como propriamente dizia, eram pequeninos, que mal poderia fazer? Já tomara drogas mais pesada. Certa vez, ela não lembrava de nada, mais foi encontrada no apartamento que dividia com uma colega em Nova York, nua jogada no chão do banheiro, já com a pele azulada, numa quase morte por overdose de pó. Salvou-se por milagre, mas dali em diante sua carreira de modelo começou a desmoronar.
                 Olhou para todos os lados. Nada de seu amado. Escolheu ao acaso o norte, correu tresloucadamente naquela direção, precisava encontrar seu amado. Um mundo girando. Um mundo escurecendo. Um mundo caindo.
                  Acorda deitada. Tem uma sala branca. Hospital? Alguém lhe pede para ficar calma. Esta muito agitada, precisa de um sedativo. Confundiram-na como uma louca enquanto corria na praia, não é verdade? Ninguém entendia nada do que ela estava falando. Entrou um médico bonitão no quarto. Não podia pensar nisso tinha um encontro marcado para as seis. Seis em ponto, na areia, não podia faltar. Queria saber se fora difícil de trazê-la até ali, uma vez que era muito pesada. Tinha exagerado no café da manhã, mas não se repetiria, jurava. Todos se entreolharam estupefatos, diante de uma jovem magricela, onde não as viam carnes, tampouco gordura. Anorexia, terrível. Aplicariam um calmante poderoso, disseram-na que era para o bem dela, queria sair logo dali, afinal tinha compromisso para a manhã seguinte. Fez efeito este remédio, fechou os olhos. Onze horas e cinqüenta e nove minutos.

domingo, 3 de outubro de 2010

Nem te conto

Uma vez minha tia Laura ouviu um conto, enquanto esperava o ônibus no ponto, com uma amiga, autora da narrativa. Ansiou por contar a alguém, esperando no ponto do trem, contou para uma dona.
Essa dona, era Isabela, que correu a contar ao marido que trabalhava no ponto de taxi da praça central. Mais tarde naquele dia narrou o conto a um passageiro que se dirigia a um ponto de encontro com alguns amigos, e não deixou de lhes contar a historieta.
 Não tardou para que, passando de uns para outros, de outros para milhares de outros, logo todos contavam o conto. E nessa toada, cada um aumentando um ponto, hoje ninguém mais se lembra do conto, só dos pontos.

domingo, 20 de junho de 2010

O dia que perdemos a taça


Eu nem queria lembrar mais, mas naquela tarde quente de domingo de 12 de julho de 1998, estávamos em Paris, e qualquer um com quem se comentasse o fato reagia com indagação.
- Como assim? Quem em sã consciência gostaria de esquecer uma tarde belíssima em Paris?
As mulheres como sempre, pensando em compras, e romantismo medieval na cidade luz, nem prestam atenção no sofrimento de um revés de três gols a zero sofrida pela seleção canarinho naquele momento. Insensíveis.
- E você estava naquela final?
Em uníssono, as pessoas que se encontravam diante da mesa me olham com espanto.
- Mais ou menos...
Gaguejei. Afinal, eram tantos olhos indagativos sobre mim. E as coisas começavam a piorar. Estavam todos me fitando como um interrogatório policial.
- Como assim? Mais ou menos? Ou se está ou não está?
Eu não sabia como sair daquela sinuca de bico. Estava me sentindo como um Materazzi com uma cabeçada no peito, mas isso era de outra copa, igualmente esquecível para a seleção amarela.
- Fui à França ver a copa. E não vi dois jogos apenas.
- Quais?
- Contra a Noruega, pois já estávamos classificados...
- E o Brasil perdeu.
-... E a final.
- Por que diabos uma criatura vai à copa do mundo e perde a Final?
- Agora vai dizer que pensou que já estava garantida a taça?
- Não! Imagina! Eu, jovem de dezoito anos, na frança...
 Não cheguei a completar a frase, o restaurante todo já estava correndo atrás de mim. Afinal o Brasil perdera a copa por minha causa, já que estivera fora nos dois jogos que a seleção perdera. Menos mal que não precisei explicar que perdemos a taça por causa de outra taça, ou melhor meia-taça.

quinta-feira, 3 de junho de 2010

O outro do Paraíso


 Caminhava tranqüilo pelas estradas cobertas de serração. Ainda estava escuro, mas não tardaria o raiar do dia. Apenas se via a chama acesa do cigarro e pigarrear costumeiro do homem magro e franzino que andava pelos trilhos tão conhecidos à luz do dia, mas que pareciam inóspitos àquela hora da madrugada. Perdera o ônibus que o levaria à cidade mais próxima. Não bastasse o infortúnio de perder o transporte, ainda tinha que voltar para casa, não que não gostasse do velho rancho de madeira coberta de capim, mas sim, pela distancia. Levava em torno de uma hora para cobrir os seis quilômetros até a estrada que passava o velho ônibus.
Entrou em casa exausto, apesar de estar acordado à apenas três horas, ou talvez três horas e meia, pelo menos poderia voltar a dormir antes de ir trabalhar na lavoura de milho. Entrou no quarto a lamparina estava acesa. Iria gastar muito querosene, não havia energia elétrica ainda. Tinha um par de sapatos que não era dele ao lado da cama. Sob ela, um homem, seu conhecido dormia tranquilamente ao lado da sua esposa. Eva parecia feliz.
Adão sempre imaginou estar no paraíso. Aquele momento pareceu um inferno. Seus sentimentos nunca antes expressados, como amor, ou gratidão à mulher ali sorridente ao dormir ao lado de um homem que não era ele. Ficou em silêncio tétrico. Foram longos minutos em que até as batidas do coração cessaram. O vento parou. Nem grilos rompiam a calma da aurora próxima.
Então se mexeu. A passos leves deixou sua alcova violentada rumando à cozinha. Algumas lágrimas escorriam, mesmo a contragosto, avivou o fogo de chão que agonizava. Aproximou a cambona do fogo para aquecer a água para o mate. Tirou a erva, ainda nova, da cuia. Cevou outro, e sentou-se no velho banco de três pernas. Sorvia mate após mate, entre uma tragada no palheiro e um esputo no chão. De vez em quando o galo cantava, acordando o cachorro sarnento que se aquecia próximo ao fogo, balançava o rabo e voltava a dormir serenamente. 
Pouco a pouco a luz do novo dia adentrava pelas frestas da parede. Os pássaros acordavam alegres e festivos. O homem franzino diante do fogo acrescentava mais lenha às chamas, e sorria. Afinal, como punição aos amantes matutinos, não os convidara para tomar chimarrão.

domingo, 25 de abril de 2010

O Filme


-          Corta!
Sempre quis começar uma história desta forma. Pronto comecei. Vê-se uma mulher sozinha. Olha para todos os lados assustada. Quer entender o que está acontecendo. Estava no rio lavando roupas, parecia ser um filme antigo. E era. O ano era 1941. Os cabelos negros estavam envoltos em um lenço azul. Não era mais azul, estava escuro, era um filme preto e branco. Por um breve instante ficou tudo num silêncio sinistro. Atônita olha para frente. Tem três câmeras, luzes e pessoas. O rio fica seco de repente, era um cenário. Ficaram algumas pedras que por instantes roubam sua atenção. Está chocada com o sumiço repentino das águas de um rio corrente. Cessa o cantar dos pássaros que lhe presenteavam com uma linda sinfonia. Entra um homem com um texto na mão, dizendo:
-          Muito bom. Essa cena ficou boa. Vamos parar por hoje. Continuaremos amanhã.
Entra outro homem com uma maquina fotográfica, tira fotos da mulher que continua estática, vestida como uma mulher dos anos quarenta, na sua volta pessoas vestidas com roupas modernas. Conversavam numa rapidez sem nexo. Não entendia nada com nada. Uma mulher com cabelos compridos, claros e lisos, usando óculos de grau, observa suas roupas depois faz anotações numa prancheta. Depois uma outra moça, esta com roupas repletas de adereços e adornos coloridos, começa a recolher a roupa que até agora estivera lavando, tira seu lenço, em seguida lhe puxa pelo braço e começa a lhe tirar a roupa, atrás de um biombo improvisado. Ainda aturdida com os recentes fatos, não consegue reagir, nem falar nada.
De repente nos sentimos vigiados, perseguidos por coisas invisíveis, ficamos encurralados dentro do nosso próprio habitat, como se sempre tivesse alguém a nos espionar. Final do dia, sem nada para fazer, você resolve ler. Encontra do nada um livro sobre a estante. Não sabe como ele foi parar ali, pensa que foi a empregada, o mordomo, ou um dos filhos. De repente lembra que não tem nada disso, mora só você e um pequeno gato ou um cachorrinho, quem sabe. Sem se preocupar mais com esta incógnita, pega-o para ler. E você no sofá da sua sala, lendo este pequeno texto, quando alguém surge do nada gritando:
-          Corta!
Você olha para os lados com uma surpresa inacreditável, olhando pasma para aquela equipe toda ali dentro da sua sala sem seu conhecimento prévio. Um homem careca, de colete como estes clichês de filmes dentro de outros filmes, vem na sua direção, com uma prancheta na mão.
-          Esqueceu do ensaio? Nesta hora você fica furiosa por estar lendo esta porcaria sem pé nem cabeça, e joga o livro contra o espelho. Te liga. Vamos gravar.
E ele volta para onde estava anteriormente. Um outro ajusta um pouco a lente da câmera, para filmá-la em close, outro ajusta a luz, enquanto outro posiciona um microfone com um longo cabo sobre sua cabeça. Antes que o diretor de sinal para voltarem ao próximo “take”, uma moça de cabelos coloridos corre até você, e retoca a maquiagem. O homem de colete senta diante de um pequeno monitor e grita:
-          Atenção! Som! Luzes...câmera...ação!
Ainda atabalhoada com esta situação desconexada, não consegue falar uma só palavra, assistindo a tudo como se fosse uma estátua. Fica sem saber o que faz primeiro, continua a ler o livro ou faz um escândalo para por para fora este bando de malucos. Sem saber se é real ou pura alucinação resolve seguir o roteiro, mas por ira própria, levanta como um furacão e joga o livro a esmo, quase acertando um dos presentes.
-          Corta! Muito bom. Vamos á próxima cena.
O homem caminha para o seu lado dizendo:
-          Incrível! Incrível! Incrível! Você capturou o espírito do personagem, era isso que eu queria.
E você olhando para o colarinho do homem e para o espelho, pensando que a cena ficaria melhor se o espelho fosse quebrado de outra maneira.
Pouco a pouco a história vai perdendo seu ímpeto inicial. Eu fico sem rumo no meio desse enredo. Parto para cima da velha Olivetti, assim mesmo com maiúscula por que ela é sugestionável e ameaça fazer greve do contrario, aos socos e pontapés, numa busca desenfreada para um fim aceitável. Uma saída plausível para isso tudo seria... Não!  Não ficaria legal. Prefiro jogar fora á continuar com esta história maluca, que iniciou para ser sobre cinema, tomou outro rumo e agora fala sobre nada. Sabendo que será esquecida por ai, e muito provável ninguém terá interesse em ler, levanto da cadeira, enfurecido. Quando vou arrancar o papel para jogar no lixo, um ser estranho de colete e longos cabelos invade meu escritório gritando:
-          Corta!

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Era uma vez novembro



- Carmem!!!
O grito que ecoou pela casa, pode ser ouvido por longos minutos, ecoando nas montanhas e matas distantes, contrastando com aquela voz sussurrante, ouvida pela menina três anos antes.
- Carmem... Carmem... Carmem...
Uma mulher branca, quase transparente, usando um longo vestido branco, esvoaçante, acenava com a mão e sussurrava.
- Carmem... Carmem... Carmem...
- Mãe quem é ela?
A menina olhava ao longe, próximo a uns eucaliptos, e apontava.
- Não tem ninguém lá, Carmem.
- Tem sim, mãe. Olha lá. Ela está toda de branco, me chama e faz assim.
Levantava as mãos e mostrava três dedos. Era a idade dela. Nem prestou muita atenção, deu uma explicação qualquer, que nem lembraria depois, e seguiram em frente. A mãe católica fervorosa, nem queria discussão, mesmo quando um dia a menina perguntou.
- Mãe, é verdade que crianças são anjos?
- Claro, filha.
- Se eu morrer vou para o céu.
- Daqui a muitos anos, quando fores velhinha, vais morrer, como todo mundo, e vais para o céu, ficar ao lado de Deus.
No mês de novembro de 1953, atípico, fez uma friagem intensa no sul do Brasil, de gear. Os campos ficaram alvos, e a garota, ali com seis anos, olhava ao longe.
- Mãe, no céu faz frio assim?
- Não filha, que bobagem.
- Mãe, se eu morrer, a senhora vai chorar?
A mulher olhou fixamente para a garota, sua filha mais velha, cuidando do filho mais novo, com cerca de nove meses, criança pela qual, Carmem, a mais velha, tinha uma adoração incondicional.
- Deixa de ser boba, Carmem, na certa eu vou morrer bem antes.
Sempre alegre, e atenciosa, a menina Carmem, com seus tenros seis anos, era adorada e admirada por todos á sua volta. Carmem, estava sempre por perto do mais novo, quinto filho de seus pais, cuja alcunha era Noi. Não satisfeita com a resposta evasiva e demorada a mãe, a garota insistia:
- Cuida bem do Noi, tá mãe. Será que papai vai chorar também, se eu morrer?
- Carmem, já chega por hoje, esses assuntos não são para crianças.
Como num ritual de despedida, já que a noite se aproximava, Carmem beijou seus quatro irmãos com ternura, e foi para seu quarto. Duas horas mais tarde, sua mãe a encontra som os pés no chão, caída sobre a cama de costas, desfalecida. Numa atitude maternal, tomou-a nos braços, incrédula da situação.
- Carmem!!!
O grito desesperado, saiu entre imagens, vozes de tudo o que a garota relatara nos três anos anteriores, como num cinematógrafo, uma história em frames, nervos em frangalhos. Até os pássaros acordaram no desespero materno. A luz da lamparina escureceu. O mundo ficou mudo. O céu ganhava mais uma estrelinha. Lá fora o vento frio de um novembro atípico, cochichava com as arvores.
- Carmem... Carmem... Carmem...

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Novíssimo conto de fadas

Foi amor à primeira vista, casamento pomposo digno de princesas. Era um amor grandioso. Era tanto amor que a primeira briga foi para saber quem amava mais. Não tardou muito, depois de tantas brigas e sem chegar a um consenso, se separaram e foram felizes para sempre.

sábado, 2 de janeiro de 2010

Generais não mascam chicletes

Desculpe, mãe. Eu não pude voltar vivo da guerra. Bem que tentei. Mas morremos todos, sempre morremos. Meus sonhos, minhas lembranças e meus amigos estão enterrados na trincheira, a quem chamamos, traiçoeira. Ninguém, ninguém volta vivo depois de uma batalha sangrenta. Entre vivos e feridos, morreram todos, não restou nem baratas. Mãe, a guerra lá fora, é diferente, aqui dentro o sangue nem mais escorre. Mas vemos as veias rasgadas como rios.
Sabe aquele sonho que tínhamos de mudar o mundo? Pois escorreram pelas montanhas, como o sangue nosso de cada companheiro que ia tombando. Somos todos mortos, companheiros de armas, ou oponentes de coração. Estamos todos estilhaçados, como as granadas de nossas lutas, e nossos pedaços estão espalhados pelo front. A pomba branca que trazia a paz compartilha suas penas com a gente.
Nossos vultos vagam pelos campos em busca de uma goma de mascar para distrair os dentes. Os que ainda respiram, são fantasmas do que foram um dia. Nossos lamentos são como um muro de milhares de anos. Mãe, porque nossas vidas não são como os bônus do videogame? Cadê o “reset” deste jogo? Somos tão competentes para destruir a nossos semelhantes, assim como a nós mesmos. Matar as pessoas, mesmo que adversários, é como cortar os dedos. Nossos corpos se dilaceram e não podemos reiniciar o jogo.
Ainda ontem quebrei os espelhos que restavam no acampamento, não suportava mais ver a imagem do monstro que se instalou lá dentro, e me encarava furioso, cada vez que olhava para ele. Os ratos e os vermes que comandavam meu corpo de humano, ficam escondidos sob meu casaco de sargento, assustados com minhas honrarias de herói. O reflexo de minhas comendas aflora meu instinto de animal. Todas essas medalhas, mãe, ganhei matando gente, cortando meus dedos.
Precisava matar! Eles queimam quem desobedece. As chamas libertam minha alma chamuscada, mas você vai receber uma medalha, mãe, envolta numa bandeira assassina. A mentira consumiu minha carne, nem sei onde está meu corpo, mas caminho em círculos, há milênios, me parece, que não saio do lugar. Mãe, me desculpe, mas eu não deveria ter saído do meu berço.

A boa música brasileira

Rádio UFPR

 

Você está ouvindo a RádioUFPR, a primeira rádio feita
exclusivamente para a Internet no Estado do Paraná.