terça-feira, 19 de outubro de 2010

Encontros na areia

                    Desceu de seu apartamento, exatamente seis horas da manhã, estava escuro, mês de maio, pleno outono, da sua janela via o mar, a areia. Comprado depois de muito tempo, pois foi sonho acalentado. Neste dia sombrio de outono, resolveu descer até a praia e ver, o estranho homem que via da janela sentar na areia todas as manhãs, pontualmente seis horas, com exceção dos dias chuvosos e das segundas-feiras. Podia ser um guarda noturno, que na saída poderia estar exausto e precisava recobrar as energias olhando o nascer do sol. Isso deixava a radiante, pois costumava acordar cedo, saia para a sacada com a única finalidade de ver o sol menino.
                   Seis e quinze, ainda estava muito escuro, a praia deserta, como sempre nesta época, morava há muito tempo nesta cidade, mas não acostumara com este avesso da cidade, no verão parecia uma metrópole, e no inverno cidade fantasma. Caminhou até as ondas morrentes, mas não molhou os pés como costume, a água devia estar muito gelada. Lembrou de um antigo filme que vira sobre uma cena bucólica como esta, mas não lembrava do nome. Essa memória! Pensou. Chutou uma conchinha atirada na praia, casa de algum molusco esquecido como ela, uma dupla e tanto. Sentou-se na areia, numa espera de esperanças perdida, pois passava da hora daquele misterioso homem chegar até ali, vai ver estava de férias. Inferno. Poderia ter ligado desmarcando o encontro, mas nada, nem um sinal. Deitou-se olhando o céu cinzento de maio, na ânsia de ver uma estrela solitária moribunda para dividir seus dilemas. Não havia nada. Nem o homem. Que não mandara recado desmarcando o encontro às seis horas.
                   Seis horas da manhã, mais vinte e sete minutos. Estava em silêncio no olhar do relógio, que tranquilamente caminhava a passos curtos, segundo a segundo, rumo ao mesmo lugar, indiferente a mulher que lhe carregava no pulso, que queria gritar ao mundo este dolorido queimante que lhe consumia por dentro. Seria improvável que soubesse de seu encontro, uma vez que nunca se falaram, mas ele devia saber dela que todos os dias, lhe observava de sua janela, para agora ser desprezada, enganada, iludida, pois já o amava. Seus olhares mudos, diziam tudo, mas ele não lhe dava atenção. De repente passou a odiar a areia, o mar, as ondas, até a brisa suave que lhe afagava o rosto todos os dias, seria repugnada, odiaria praia dali pra diante, não mais poria os pés neste local infecto, baniria os banhos marinhos de seu calendário. Aquele bronzeado adquirido durante o ultimo verão, ainda lhe marcava, seria o último. Desejaria um próximo veraneio chuvoso, como em matas tropicais úmidas, para tudo em volta virasse um banhado intransponível.
                    Boa idéia. A melhor que tivera. Seis e quarenta e dois. Poderia chover a ponto de alagar tudo, formar um banhado, não se importaria, ficaria sozinha na praia que tanto amava, pois só assim ninguém lhe causaria sofrimento, vindo até a praia para lhe atiçar desejos para depois sumir sem deixar vestígios nem recados. Nem um telefonema. Levantou-se, sacudiu a areia presa nas roupas, depois vasculhou as dunas, a beira do mar, na procura de vestígios, deveria de ter deixado ao menos um rastro, um bilhete jogado na areia. Nada. Somente areia varrida pelo vento. Mais adiante quatro jovens, dormiam estirados na areia, com uma marca de fogueira no centro, cada um, caído para um lado, deviam ser universitários despreocupados com a vida, na certa gastando o dinheiro dos pais, sem que estes saibam de nada. Olhou-os com inveja, nunca tivera um momento assim na sua adolescência, aliás, nada tivera. Os seres estranhos, parecidos com personagens de contos malucos saídos da cabeça de algum escritor lunático. Um usava óculos, cavanhaque ralo o outro, parecia playboy, com roupas de grife e tênis de marca cara, as meninas uma era gordinha, isso lhe deixou aflita, pois parecia se espelhar nela, não que ela estivesse gorda, nada disso, e a outra era angelical, branquinha como a neve, cabelos ondulados pretos.
                    Seis e cinqüenta e nove, falta um minuto para á sete horas e aquele cachorro não apareceu. Devia ser pelo seu peso. Estava muito gorda era isso. Apertou a barriga. Era isso. Uns quilinhos a mais, o que é que tem, todo mundo tem. Não ela não podia ter, assim como todo mundo, ela era diferente. Era muito diferente, muito diferente, não tinha aquele corpinho violão que os homens tanto procuram, chegavam a ter torcicolo no pescoço para olhar paras as outras mulheres, para ela somente olhares discriminatórios. Estava acabada, não tinha auto-estima, estava um trapo humano jogado na areia. Quem sabe se ficasse jogada na areia, mais tarde seria salva por uma destas ongs que salvam baleias. Estava sendo muito severa consigo mesmo, precisava jogar sua baixo-estima lá para o alto. Quem sabe se jogada na areia junto a aqueles baderneiros de beira de praia não virasse ao menos personagem de algum conto romântico.
                    Conferiu a hora, sete e dez, conferiu a data, terça-feira, não errara não, ontem fora o dia que ele não viera, mas há quase um ano, pouco mais ou pouco menos, ele vem, porque hoje não viria? Seria por causa dela? Não ele ainda não sabia da sua existência. Poderia ele ser casado, e sua mulher o deixara angustiado, ele vinha espairecer na praia impreterivelmente de terça a domingo. Poderia estar previsto chuva para logo mais, deveria ser ele um meteorologista, ficava as madrugadas fazendo as previsões depois vinha para a areia espairecer. Estava morta a charada. Ou quase? Ele devia então estar ali, era terça feira, passava das sete, sempre ia embora depois das oito, justo hoje ele não viera. Olhou para sua sacada, o homem lhe olhava de lá na mesma posição que ela o observava, com gestos polidos, sentou-se na sua rede. Esfregou os olhos, o sol nem estava tão quente para fazê-la delirar. Mas era um delírio, estava vendo-o em vários lugares ao mesmo tempo, ele dizia adeusinho. Era um adeus para nunca mais. Ele arrumara outra para servir-lhe o café na cama como ela assim fizera por longos meses, quase um ano. Ele não a queria mais estava gorda a ponto de enterrar-se na areia, sentia como quem está numa areia movediça. Estava gorda precisava emagrecer, correr na praia ia ser bom, logo estaria esbelta de novo como há anos atrás, voltaria a usar seus biquínis minúsculos. Poderia até usar fio dental. Está tão fora de moda. Pouco importava iria emagrecer depois tomaria um banho de loja. Voltando a ser magrinha como era cada calça dela daria duas novas, uma de cada perna. Caiu na areia rindo da própria piada. Alguns moradores que faziam suas caminhadas, habituais naquele horário, imaginavam uma louca.
                 Sete horas e cinqüenta e quatro minutos, voltou para casa, exausta, estava na hora de seu café da manhã. Depois do desjejum, com queijo, omelete com bacon, café com leite, salame, pães e bolachas, geléias, entre outras coisas. Depois de muito se fartar, sentou-se na varanda para olhar a praia, tinha agora algumas pessoas por lá, dentre elas, um cidadão, barba rala por fazer, cabelo despenteado, fuma um cigarro, e caminha devagar com as mãos nos bolsos.
                  São nove horas e dois minutos. Seu apartamento fica no quinto andar, tenta correr, mas não consegue, precisa muito esforço. O elevador demora. Não é justo, logo agora que tem uma chance real de arrumar um marido. Está apaixonada, precisa correr. Elevador que não anda parece enguiçado. Nem sobe, nem desce está parado no sétimo andar. Justo hoje. Logo neste minuto. Devia ter ficado na areia, mas estava com fome. Maldita gula, ainda bem que é um pecado capital. Era uma pecadora. Iria para o inferno, justo ela tão boa para as pessoas, caridosa. Tremeu ao pensar isso, pois não queria ir antes de casar e ter filhos. Cinco filhos. Que maravilha as crianças correndo pela casa. Finalmente chega o elevador, está cheio de malas e outras coisas não cabe nem um alfinete, a mulher, aquela perua do setecentos e dois vai viajar, deve estar indo para Brasília, dizem que é amante de um deputado ou senador, só pode estar fugindo, deve ser um destes envolvidos com CPIs. Mas justo agora, num minuto crucial e decisivo de sua vida. Não devia ter voltado para o café, isso sim, precisava de um regime. Amanhã mesmo começaria um. Precisava emagrecer. Precisava de um elevador. Precisava de tempo, queria parar o relógio. Não adianta. Precisaria parar o tempo. Precisava se exercitar. Seria uma ótima maneira de começar, desceu correndo pelas escadas, o porteiro tentou conversar, mas ela já saíra porta a fora como uma louca.
                     Foram longos quinze minutos, mas enfim chegou lá, estava com a roupa molhada de suor, cansada, esbaforida. Quanta diferença dos seus áureos tempos de modelo, quando era magérrima, ganhava muita grana, o suficiente para viver bem por muitos anos. Tinha vinte e cinco anos, mas sua carreira de top model internacional tinha desmoronado fazia algum tempo. Tempo este que levou a uma semi-loucura, nem imaginava que pudesse ter um semi-louco, mas nunca admitiu ser considerada louca, talvez, meio-louca. Trabalhara desde os treze anos, mentira, doze, falsificara a identidade para sair de casa mais cedo, não suportava as investidas de seu padrasto na tentativa de molestá-la, algumas vezes chegou ao seu intento, sentia se impura, insegura, parecia que ele ainda lhe perseguia, lhe bolinava enquanto dormia. Tinha então com vinte quatro anos apenas, e já estava aposentada. Por essas e por outras, que não se importava em ir para a cama com qualquer um para conseguir trabalho, era um mundo mesquinho, um mundo hipócrita que as faz coisas que não se pensa, ou até se pensa, mas faz justamente ao contrario. Muitas vezes se pegou chorando, solitária, num antro de cada um por si, nem era mais Deus, mas sim, o diabo por todos. Droga de vida. Vida de droga. Só mesmo drogas para suportar tanta pressão, sempre rodeada de gente de todos os tipos, dispostos a tantas coisas para se dar bem na vida. Era fartura de drogas, das mais leves, para introdução, até as mais pesadas, que na maioria das vezes matava, licitas ou ilícitas, para todos os gostos. Ainda hoje fumava alguns baseadinhos, como propriamente dizia, eram pequeninos, que mal poderia fazer? Já tomara drogas mais pesada. Certa vez, ela não lembrava de nada, mais foi encontrada no apartamento que dividia com uma colega em Nova York, nua jogada no chão do banheiro, já com a pele azulada, numa quase morte por overdose de pó. Salvou-se por milagre, mas dali em diante sua carreira de modelo começou a desmoronar.
                 Olhou para todos os lados. Nada de seu amado. Escolheu ao acaso o norte, correu tresloucadamente naquela direção, precisava encontrar seu amado. Um mundo girando. Um mundo escurecendo. Um mundo caindo.
                  Acorda deitada. Tem uma sala branca. Hospital? Alguém lhe pede para ficar calma. Esta muito agitada, precisa de um sedativo. Confundiram-na como uma louca enquanto corria na praia, não é verdade? Ninguém entendia nada do que ela estava falando. Entrou um médico bonitão no quarto. Não podia pensar nisso tinha um encontro marcado para as seis. Seis em ponto, na areia, não podia faltar. Queria saber se fora difícil de trazê-la até ali, uma vez que era muito pesada. Tinha exagerado no café da manhã, mas não se repetiria, jurava. Todos se entreolharam estupefatos, diante de uma jovem magricela, onde não as viam carnes, tampouco gordura. Anorexia, terrível. Aplicariam um calmante poderoso, disseram-na que era para o bem dela, queria sair logo dali, afinal tinha compromisso para a manhã seguinte. Fez efeito este remédio, fechou os olhos. Onze horas e cinqüenta e nove minutos.

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