quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Batidas na porta

               As batidas na porta, mesmo que suaves, romperam com o silêncio no fim da madrugada fria. Nem as aves tinham acordado, tampouco o galo despertador do dia, tinha dado sinal de alerta, e Mozo, já estava junto ao fogo de chão, chimarreando, na companhia da solidão, que ficava calada em seu canto, imóvel, com o olhar fixado no fogo. Não fazia idéia de quem seria, a esta hora, naquele fim de mundo, onde não se via ninguém há muito tempo, ainda mais com aquele frio.
              Morava na casinha de sapê, que construíra para morar com seu grande amor, nas margens do arroio esperança, nas voltas de um rincão, cercado pela natureza, bem longe de todas as mazelas do mundo. Ali criou cinco filhos, que o destino espalhou pelo mundo, e deles não tinha mais notícia. Parecia que até o tempo tinha esquecido do mundo a parte que era este seu pequeno recanto de paraíso, a não ser pelas marcas no rosto, lavradas com ferro de trabalho, dia após dia, de sol a sol. Mas vivera feliz, com sua companheira de longos anos, cinqüenta anos de casamento, mas que a morte, lhe arrancara com vil desprezo, levando metade de sua alma. Este ser, cruel e desumano, esquecera-se dele ali, só para mata-lo em vida, deixando uma dor latente se arrastar pelos anos, longos trinta anos, de uma amarga espera, que só a solidão suportara, até a saudade com o tempo, fugira cansada, desaparecendo no mundo, como seus filhos.
               Caso suas contas não estiverem erradas, havia completado cento e quatorze anos, neste ano, no inverno, mas não lembrava mais o dia exatamente. Foram muitos anos de vida, era chegada a hora de partir. Imaginava que a morte tinha levado sua amada para algum paraíso perdido, e que logo voltaria para busca-lo, então se pôs a esperar... e esperar... a morte, este ser asqueroso e nojento, esquecera-se dele. Quem sabe, nem a morte apareceria neste fim de mundo.
               A solidão, tão triste, lhe fazia companhia, em silêncio absoluto, há anos sem sair de junto a ele, algumas vezes, ia até o galpão, ou até o riacho, mas logo voltava, agora não se movia, só olhava as chamas. Batidas na porta. O homem, diante do fogo com a cuia do chimarrão nas mãos, hesitante, não se movia, apenas via sua vida. Mais de cem anos, com uma certeza, foram mais tristezas do que alegrias. Trinta anos sem sua amada, pareciam mais de trezentos, os cinquenta de casados, apesar de tudo o que havia de amor entre eles, pareciam cinco. Mesmo os cinco frutos deste amor, foram arrancados, deixando marcas duras num peito tão calejado. Agora a morte lhe batia a porta. Estava tão próxima, só uma porta velha de madeira, os separava.
               Não chegou a rir, porém achava engraçado, queria tanto morrer, esperando por anos e anos este momento, e agora diante da derradeira hora, tremia. Estava com medo, medo da morte. Queria esticar a vida mais uns anos, mais um pouco, mais uns minutos. Não sabia ao certo porque, mas queria viver mais. Talvez para não deixar a solidão sozinha, ela poderia se queimar pela manhã, ao acender o fogo. Mais tarde a vaca precisava ser ordenhada, e ainda tinha que preparar o café. No verão, que logo chegaria, precisava preparar a terra para o plantio. Ninguém alimentaria o gato que dormia encolhido sobre a lenha.
              Uma lágrima furtiva lhe escorre pelo rosto. Bem que a morte poderia ter se esquecido da sua existência. Poderia fazer de conta que ali era seu esconderijo, destes das brincadeiras de menino, e que não pudera localizar. Poderia inventar uma desculpa qualquer, para deixa-lo viver mais uns anos, talvez mil anos, pois cento e quatorze anos, não foram suficientes para viver. Batidas na porta. Levantou-se da cadeira, lentamente não por falta de forças, mas com intenção de retardar mais um pouco este encontro final. A passos lentos, fez da pequena distancia até a porta, parecer uma eternidade, só para pensar mais um pouco sobre tudo que vivera, ou que poderia ter vivido. A solidão deixou escapar uma lágrima incontida, que escorria pela face esbranquiçada, e não falou nada. Ficaria sozinha, desamparada. Quem sabe logo teria uma companhia, afinal a saudade poderia voltar.
               Assim que a porta foi aberta, a morte entrou sem pedir licença, não era feia como esperado, até seria bonita aos seus olhos, não fosse a pele tão pálida. Esta cor alva, talvez fosse decorrente do frio da madrugada que findava, ou da dor de tantas despedidas. Mozo deu dois passos para fora, na ânsia de olhar o mundo que o cercara, por muitos anos, mais uma vez que fosse. O sol já despontava detrás dos montes, com cara de sono, muito tímido, iluminando aos poucos as copas das árvores, despertando as aves, que envolviam a manhã, numa sinfonia alegre, aonde as gotas da tristeza, iam evaporando junto ao orvalho congelado que cobria os campos de branco. O galo, já atrasado, sinalizava o inicio de mais um dia. A vaca espreitava na porteira, o bezerro no galpão, á espera da ordenha. O cachorro companheiro saiu no terreiro, acenando o rabo alegremente, como quem diz bom dia, contrastando ao dono, que se amargurava por dentro. Nunca dera á devida atenção a tudo isso, amanhã certamente, não mais a teria diante aos olhos, nem lembraria de nada, ao menos era isso o imaginado.
                Ao voltar para dentro, fechou a porta atrás de si, a morte estava diante do fogo, aquecendo suas mãos de donzela, conversando com solidão que há muitos anos não via. Depois arrumou um pouco a erva na cuia, e sentou-se entre elas, continuaria seu chimarrão, enquanto a morte se aquecia junto ao fogo.

terça-feira, 29 de setembro de 2009

O homem isolado na Calçada

                De repente estava só. Poderia ser apenas uma leve impressão, olhando ao seu redor, as pessoas, milhares delas, passavam por ele sem que percebesse que estava ali. O olhar vagou ao longe, pareciam ondas humanas, invisíveis. Caminhava com um pouco de dificuldade, com os anos á pesar-lhe sobre os ombros. Um manto negro, como profecia, cobria seus ombros cacundos. E as pessoas continuavam a passar por ele, apressadas, pareciam fugir. Ele sabia, fugiam do futuro incerto, que se escondia logo depois da esquina. O rumo incerto. Ninguém por perto, só corpos invisíveis. Deitou na calçada, jogando de lado seu chapéu, roído pelos dias, para ver se alguma alma caridosa lhe estendesse a mão com um gole de água ou um misero pão. Mas suas suplicas esvaem-se por entre as almas invisíveis, se esgueiram por entre corpos irascíveis. Não vale nada mesmo esta vida.
                Vale o seu chapéu velho rasgado, jogado no chão, sem ter ao menos uma moedinha desvalida. Seu mundo termina ali, onde deveria ser o começo. Ele permanece sentado na calçada, esperando. Esperando. Os minutos passando, e ele esperando. As pessoas passando, e ele esperando. O mundo girando e ele esperando. As horas passando ...passando ...lentas ...lentas ...e ele esperando... esperando. A chuva vai caindo, as pessoas correm fugindo dela, as pessoas vão sumindo, e ele esperando. Espera por uma mão, que lhe seja estendida, seja com água, ou seja comida, ou apenas uma mão, mesmo que com uma única pretensão, a de levantá-lo dali. As águas correm pelo rosto repleto de rugas secas, sem saber o que são as lágrimas ou se é a chuva.
               Fica sentado imóvel na calçada esperando. Os dias vão passando...passando. Passam lentos, martirizando ainda mais seu cansado corpo, enquanto ele fica esperando... Sem esperanças, fica olhando as pessoas retomarem suas rotinas robotizadas, sem olhar para nada, sem olhar para o lado, para ver o pobre diabo jogado na calçada. Um odor fétido circunda o estranho ser à beira do caminho, onde todos passam, onde tudo passa, uma onda humana invisível, surfadas com maestria, por pastores de ovelhas desgarradas, e ele sem uma lãzinha refugada, para esquentar seus pés nus sobre a pedra gelada.
               Os meses vão passando... e o homem sozinho no meio da multidão, á rua vai sumindo, ele vai ficando ali, só, sentado na calçada á espera de um manto desgraçado, sem uso, para que possa cobrir suas dores. As feridas abertas pela solidão sorriem para ele, como se velhos amigos fossem. A calçada aos poucos vai se tornando intima, a ponto de confessar velhos segredos. As formigas, tão egoístas, não dividem os farelos de pão, enquanto usam seus magros dedos, como velozes auto-estradas. Os pombos inquietos desfazem-se de seus dejetos, em cima dele, sem pudor nem compaixão, do ser que vai aos poucos se enraizando ao chão, esperando pelos cupins que devorarão seu tronco, os galhos, as raízes e as folhas.
                Os anos vão passando, e a carga aumentando, as pessoas se multiplicando, agora da calçada ele já nem vê a rua, as pessoas passam apressadas, pisam nos seus pés, que já perderam a sensibilidade, no inicio meses atrás, ainda sentia os cães lamber o sangue das pisadas alheias nas pernas, agora os poucos cães que conseguiam chegar queriam roer sua canela exposta. Ele até tenta levantar a mão para dar um tapa no animal, mas algumas formigas já devoraram suas forças.
              Um político em campanha, fala aos transeuntes, que ali está uma pessoa que precisa de ações governamentais para sair daquela situação. Até que enfim alguém olhou para ele. As pessoas comentam o horror daquele resto de corpo jogado na calçada, e que vai se deteriorando dia após dia. Até as eleições sempre tem alguém ali fazendo campanha, pessoas comentando, câmeras e microfones, que afugentou o cachorro faminto que agora se esconde debaixo de uma lixeira. Só um rato, agora, lhe roí a canela, dentro do osso onde ninguém vê. Um padre faz o sinal da cruz, um pastor lhe dá uma benção divina, e assim vários representantes do superior passam, e o homem permanece ali, agora cada vez mais corroído.
             O prefeito começa a ficar impaciente com o interesse do país inteiro sobre aquele homem derretendo na calçada. O homem virou capa de revistas nacionais e internacionais, os jornais escritos e falados, as emissoras de radio só falavam disso, até as partidas de futebol foram paralisadas para minuto de silêncio em homenagem. Em cada esquina, salões de beleza, bares, barbearias, cafés, reuniões de intelectuais, teses de doutorandos, redações de vestibulares e concursos, sessões plenárias, só se falava no homem exilado na calçada. Um vereador propõe uma taxação para moradores de calçada, outro taxar o odor fétido que está causando ao centro, outro propõe levá-lo para outro município e outro ainda propõe coloca-lo na prisão por fazer tumulto em publico e ameaçar o bem estar, a ordem e a segurança dos cidadãos de bem.
             Meses mais tarde, passadas as eleições ficaram descansados, já tinham esquecido totalmente o assunto, já não se ouvia mais falar no homem, o cachorro tinha morrido de fome, e agora era comido pelas moscas, e o homem na calçada era devorado pelos ratos, formigas e outros insetos.

Suicidas vão para o céu?

                Fora abandonado pela quarta vez. Primeiro sua mãe, no parto, depois seu pai, que saiu para comprar cigarro, depois sua irmã, com um sonho de ficar rica na América, agora Leila, com sonho de ser Big Brother. Estava sozinho diante dos chuviscos da TV. Superou todos os abandonos, menos Leila, sua mãe, diziam:
                 - Ela está no céu sentada à direita de deus pai nosso criador.
                Queria não acreditar. Não tem pai no céu, talvez caminhe perdido pela terra atrás de um boteco imundo atirado as moscas numa busca desenfreada para torrar pulmões. Leila, que sabe-se lá o que estava fazendo pelo mundo, mantinha uma copia colorida bem viva, atormentando seus pensamentos.
Estava certo de uma coisa, só tinha uma saída. Mata-la. Dentro da sua cabeça, pelo menos. Iria se suicidar. Comprou uma arma, depois de quase seis meses fazendo todos os tramites legais para comprar uma pistola dos seus sonhos. Era niquelada, automática, quinze tiros. E nesta tarde, ainda vendo Leila na tela de sua TV ?chuviquenta?. Ainda estava na sua cabeça, nos quadros, nas telas, no aquário, na janela e nas flores. Opa, nos outros lugares tudo bem, nas flores era demais.
               Colocou o cano gelado da arma, prenuncio de um projétil quente lhe abrindo caminho pela cabeça. Estava numa posição muito estranha, não daria, poderia falsear na hora de puxar o gatilho. Coloca o cano no ouvido. Desiste. Coloca o cano dentro da boca, mas desiste novamente. Enfim, coloca embaixo do queixo e se prepara para o momento derradeiro. Conta até três e vai puxar o gatilho. Para. Lembra-se que não escreveu nenhum bilhete ou uma frase explicando o motivo.
               Sentou se na cadeira. Abriu um caderno e pensou no que escreveria. Escreveu. Arrancou a folha e jogou fora. Quando uma idéia lhe desce a cabeça. Suicidas vão para o céu? Não queria morar no inferno para sempre. Seu epitáfio não saia. Descarregou a pistola na caneta.

A boa música brasileira

Rádio UFPR

 

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exclusivamente para a Internet no Estado do Paraná.