sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Te Amo, Manoela


                 Talvez como um casulo, eu estava atirado num canto mofado de um sofá duro destes de aeroporto. Lá fora chovia, ali fazia frio. A laje de mármore veneziana me esfriava as costas como um congelador. Não podia fumar, mas à vontade de acender um cigarro me queimava os pulmões. Uma tortura que só um fumante é capaz de desintegrar um pulmão para sentir. O avião não chegava. Passava das sete horas. Esperava Manoela, com chegada prevista para as seis e meia da noite, tínhamos marcados de passar as férias de julho na praia. Tínhamos nos encontrados numa sala de bate papo da internet, dessas que chamam de chat, numas das raras vezes que consegui entender dessa linguagem maluca que usam por lá.
                 As pessoas na minha volta corriam de um lado para outro, como lagartas tontas, num converso incompreensível. Ainda que não tivesse visto, nesta hora talvez já entendesse a gravidade do problema. Quem imaginaria algo semelhante diante de seus olhos. Um avião cruza a pista e não para. Salta para a morte além da avenida. As chamas me derretem, escorrego pela parede como sangue quente.
                 Meu cadáver permanecia perdido como um palheiro rodeado de agulhas, que me traspassam sem piedade. O fogo que consome os arredores me gela o corpo, estirado pelo chão frio deste assassino aeroporto. Veio-me a mente Manoela. O que estavam fazendo com ela? E comigo? Um amor assim não poderia ser queimado nas chamas de um coração apaixonado. Alguém me puxa pela mão. Borboletas amarelas adentram pela janela aberta como uma rajada de fumaça e me guiam pela mão rumo ao nada. Trezentos e oitenta milhões delas a enfeitar um saguão, e vinte milhões tentavam arremeter na pista.
                  Tivemos uma paixão ao primeiro clique, projetos para uma vida juntos. Ela chegaria a São Paulo numa inacabada terça-feira e depois iríamos para Fortaleza, curtir as férias de inverno na quente cidade cearense. Ela embarcara em Porto Alegre, num frio de “renguear cusco” como escrevera no seu ultimo e-mail, e queria calor. Até os projetos de três filhos brincando no quintal numa manhã de sol, Lana, Alisson, e Geovana, não necessariamente nesta ordem, estariam estraçalhados contra uma parede. As lágrimas deixavam sulcos profundos no meu rosto, como se um avião passasse deslizando sobre minha face. Meus gritos cravaram minha garganta como espadas de desculpas esfarrapadas. A correria continuava e parecia que eu estava noutra esfera, meus pés permaneciam grudados ao chão como o redentor em seu morro ou algum imã gigante me agarrava pelos tornozelos.
                 A pergunta cruel me envolvia. O que seria de mim? Iria contrariar Gilgamesh, em vez de buscar a vida eterna, buscaria a morte eterna. De que adiantou minhas orações. Minha fé pesou as almas dentro do avião. Não havia respostas. Havia perguntas e desculpas. Desculpas que não fecham as chagas, abertas ao léu, incuráveis escancarados á uma hipocrisia coletiva. Eu queria gozar com um cigarro entre os lábios, mas nem isso eu posso, estou preso. Preso a um cinto de imbecilidades que nem posso tira sem antes chegar ao banheiro de mármores importados, que não se importam com o pouso irregular de meus milhões de impostos, só relaxam ao som da luz e do amor profundo deste lábaro estrelado.
                  Minha vida sem duvida acabara-se ali. Mandaria por meu nome na lista de mortos. Não tinha lista. Nem informações. As estrelas do mato azul da nação esconderam-se de vergonha. Nem espiavam pelas frestas abertas por estupradores eleitoreiros. Uma empreiteira construía meu sono que não fechava meus olhos, nem abria minha garganta para libertar o grito de dor, preso como um trem de pouso que não tem uma pista para sentar os pés.
                   Todos os mortos gritavam em meus ouvidos quando fiquei surdo. Eu não ouvia mais nada nem o som do silêncio boquiaberto de pavor. Sirenes de bombeiros e ambulâncias pareciam estar á milhas e milhas distantes. Um grito de medalha ecoa pelos canais aéreos do Brasil. Um brinde ao caos. O brinde a honra destes homens é um tumulo á honestidade que voltava ao país neste avião em chamas. Junto meu coração queimava, infestando o aeroporto com o cheiro fétido das maracutaias institucionalizadas.
                  Ainda sem forças me arrastei pelas ranhuras de minhas culpas para tentar sair dali. Ninguém entendia nada nas explicações não dadas pelas atendentes. Enquanto sangro minhas responsabilidades nas escolhas que me impuseram desde sempre, vou saindo na ânsia de ajudar as vitimas molhadas de incompetências.
                  Meus olhos ainda estão vermelhos, quando encontro Manoela. Ela diz que me mandou um e-mail dizendo que viria num vôo posterior, enquanto eu corria para o aeroporto para espera-la. Estava tudo como antes. Pouco tempo depois, esquecida a tragédia todos tomavam um sorvete de frente para o mar.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Meninas boas vão para o céu


                   - Você vai morrer e não vai para o céu!
                   Uma oração, uma palavrinha com deus. Era o convite para um pesadelo.
                   - Você vai morrer e não vai para o céu!
                  Ainda adulta vendo seu velho avô morto, gelado dentro de uma caixa de  cor marfim, um rosário no pescoço e uma bíblia nas mãos, ouvia suas ameaças.
                  - Você vai morrer e não vai para o céu!
                 Como se um castigo divino, perdera uma perna e um braço, e definhou por vários anos, vegetando sobre um catre duro. Perecera em vida uma eternidade infernal. O pastor mesmo falava, sobre o defunto.
                  - Um homem exemplar, digno de sentar a sua direita, meu pai. Aleluia.
                  - Aleluia!
                Gritavam os presentes em coro, enquanto a jovem olhava para os dedos que sobraram, e sentia calafrios de raiva. Aqueles imundos dedos, usados hipocritamente para folhear as escrituras sagradas, e lhe deflorar na tenra idade, em cima de uma mesa, um oráculo da igreja. Diante dos vizinhos era um dedicado pai de família, cinco filhos, dezoito netos. A filha mais velha, tivera três filhos, um, ainda menina. Anos mais tarde, fora acusada de satanismo pela família, pois, só aplacara sua angustia mergulhada nas drogas. As três meninas, ficaram sob guarda dos avós, corria a lenda, que eram filhos do próprio avô. Isso morreu com ela numa overdose de cocaína, anos atrás, e agora com o culpado daquilo tudo.
Amparado pela palavra de deus, uma igreja enorme, e uma mente doentia, abusava de inúmeras fieis, escorado nas tabuas da lei. A jovem, então com sete anos, espiava pela cortina a pregação eloqüente do avô que tanto admirava, não só ela, como os vizinhos todos, que se ancoravam no velho pastor, para qualquer problema, tirava a roupa da fiel, e lhe bolinava com fervor, embora caquético, e sem o vigor físico de outrora, usava meios pouco ortodoxos.
                  Qualquer coisa que se falasse contra o pastor, seria prontamente rechaçada. Sempre que houvesse alguma pessoa com problemas ele deixava qualquer coisa que estivesse fazendo e se dedicava a causa.
                  Sem saída, volta e meia sua mãe lhe deixava na casa dos avós, e não tardava para ele entrar com uma bíblia e dizer.
                  - Vamos orar. A palavra de Deus precisa ser cumprida. Aleluia Jesus.
                 Sabia ela que iam para a sala de leitura e oração, para seu avô abusar dela. Sem ter a quem reclamar usava a bíblia como desafeto, criando uma verdadeira aversão ao livro sagrado. E se recusava.
                 - Você vai morrer e não vai para o céu!
                - Eu não quero, isso é feio!
                - Isso é uma obra de Deus. Você está sendo má. Meninas boas vão para o céu. Você está com o demônio no corpo?
               Tijolo a tijolo, o coveiro, fechava a tumba, e sua alma ia se libertando. Os presentes oravam para o defunto ser bem recebido no céu, a jovem, num silêncio frio, os olhos secos atentos nos tijolos, sabendo que findava um pesadelo, sem céu, sem inferno.
               Quando o coveiro pôs o ultimo retoque de massa no sepulcro, sentiu-se livre, era uma menina má e poderia ir a qualquer lugar.

               Fatos reais, narrados pela própria personagem.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Crise existencial de um esqueleto.

               Eu ainda estava morto, quando pensei... Opa! Se eu penso, logo existo, e se existo, logo não estou morto!

O Morto

            
               Eu ainda estava morto, quando tocaram a companhia. Não me mexi. Fingia que não tinha ninguém em casa. Por muitos minutos, num trocadilho infame poderia dizer eternos, fitei o teto. Fiquei em silêncio. Hoje eu não queria atender ninguém.

A boa música brasileira

Rádio UFPR

 

Você está ouvindo a RádioUFPR, a primeira rádio feita
exclusivamente para a Internet no Estado do Paraná.